João Seixas é natural de São Pedro do Sul, onde nasceu em 1966. As suas diversas experiências, em Portugal e no estrangeiro, levaram-no até à Ler Devagar, que ajudou a fundar há 20 anos. É um dos atuais administradores da Livraria que comemora o seu aniversário neste mês de junho.
Por Bárbara Barbosa
A entrevista teve lugar na Ler Devagar, em Alcântara, no decorrer de um dia rotineiro na vida de João Seixas. De manhã, levou as crianças à escola e trabalhou num artigo sobre Política Urbana em Lisboa. Das 14 horas às 16h30 deu aulas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e acabou por não almoçar. A tosta mista que tinha pedido antes veio a tempo de uma merecida pausa na conversa. Ao universo da Ler Devagar dedica cerca de oito horas por semana, “entre horas vagas, noites, sábados e por vezes domingos”. Confessou que é complicado, porém fascinante, gerir os vários projetos em que está inserido com a vida pessoal. “Há um conhecimento adquirido e marginal que vai aumentando com o facto de ires fazendo coisas diferentes. Se não descurares nenhuma delas, aprendes mais em todas.”
A “Ler Devagar” foi fundada em 1999 no Bairro Alto, em Lisboa. Ocupou as antigas instalações da Litografia de Portugal e introduziu um conceito novo de livrarias. Como é que se formou o grupo fundador deste projeto?
João Seixas (JS): Há 20 anos juntou-se um grupo de amigos que se conheciam de várias formas. Achámos que em Portugal, e em Lisboa, estávamos a precisar de uma maior intervenção social através da cultura. Queríamos um espaço cultural que não fosse demasiado elitista nem demasiado popular, um intermédio capaz de construir pontes que permitissem avançar na forma de pensar o país e a sociedade. Um dia, um de nós disse “Há um espaço extraordinário na Litografia”. Era uma parte de um parque de estacionamento. Nos primeiros tempos pagámos o equivalente a 12 espaços de automóvel para fazermos uma livraria. Fizemos obras e fundámos uma empresa. Como éramos poucos e as necessidades crescentes, chamámos amigos de amigos e outros amigos desses amigos. Começámos com cerca de 70 pessoas. Neste momento somos cerca de 160 cooperantes.
O que é que vos levou a avançar com esta ideia cosmopolita ainda antes do início do novo milénio?
JS: Numa frase: queríamos estar fora da caixa. Hoje em dia, 20 anos depois, é relativamente fácil fazer essa análise, mas na altura não. Queríamos fazer algo diferente e interventivo, mas que fosse parte de nós. Queríamos que pressentisse a espuma da mudança dos dias, em Portugal, na Europa, na cultura. Ao mesmo tempo, queríamos que fosse um espaço de diálogo e de debate das dinâmicas sociais de uma cidade. Começou em Lisboa, mas depois estendemo-nos a outros sítios.
Entre a licenciatura, os mestrados e os doutoramentos que acumula, encontram-se experiências internacionais em Londres e em Barcelona. O seu percurso levou-o, nomeadamente, a ser Professor Auxiliar na Universidade Nova de Lisboa e Professor Convidado na Universidade Autónoma de Barcelona e na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem tendência para comparar estas cidades? Se sim, de que forma?
JS: Inevitavelmente. É em relação à vida, à economia e à ciência política urbana que as coisas se vão decidir no futuro. Tive o desejo de estudar mais e melhor há mais de 20 anos. A Ler Devagar está ligada a esse meu desejo porque é um projeto profundamente urbano naquilo que propõe. É alternativa e não é unívoca. Junta diferentes visões, ideias e perspetivas. Queríamos uma coisa tão diversa e complexa como a própria cidade. É, por isso, importante interligar a história de Lisboa, de Portugal e da Europa com a Ler Devagar.
Este espaço foi feito em Lisboa, mas podia ter sido feito no Rio de Janeiro e em Barcelona, por exemplo.
JS: Claro. Tentámos abrir livrarias noutras cidades que não apenas em Portugal, mas era necessário ter uma força e uma estrutura razoável. Estivemos quase para abrir um espaço no Rio de Janeiro. Pensámos em abrir uma livraria em Barcelona. Tivemos a possibilidade de, com um sócio, abrir uma livraria em Paris. Em Évora, Serpa e Braga, por exemplo, fazemos parte de livrarias onde não somos o sócio maioritário, mas às quais demos o nosso apoio e ideias. A boa novidade é que finalmente vamos abrir um espaço no Porto.
“Com sorte, talvez abra no início do próximo ano uma Ler Devagar no Porto”
E esse projeto está pensado para quando?
JS: Não posso dizer muito, mas o prédio está em obras. Com sorte, talvez abra no início do próximo ano uma Ler Devagar no Porto.
As cidades por onde passou têm influência no seu trabalho diário na Livraria e nos restantes projetos em que está inserido…
JS: Muita. A maior parte dos fundadores da Ler Devagar teve experiência internacional. Em França, nos Estados Unidos, eu em Inglaterra e na Catalunha… Isso dá-nos uma mais ampla perspetiva em relação às questões da cidade e do país. Aliás, a ideia da Ler Devagar surge à imagem de algumas livrarias e centros culturais que estavam a começar nos anos 90, como a Barnes & Noble em Nova Iorque e a Shakespeare & Company em Paris. Fomos visitá-las, conhecemos as pessoas e com as nossas próprias ideias abrimos o espaço do Bairro Alto.
Até 2005 a Ler Devagar fundou a “Nouvelle Librairie Francaise” no atual Instituto Francês de Lisboa, a Ler Devagar-Artes na Culturgest, e a Ler Devagar-Cinema na Cinemateca Portuguesa. Nesse ano, encerrou o espaço do Bairro Alto e acomodou-se na Galeria ZDB e na Rua da Rosa. Estas adições foram idealizadas logo de início?
JS: Esses pequeninos espaços, a Galeria ZDB e Livraria na Rua da Rosa, foram sempre alternativas até chegarmos aqui porque fomos expulsos do espaço inicial no Bairro Alto. A litografia vendeu o prédio que tinha a uns investidores internacionais e, por isso, quando o nosso contrato de arrendamento terminou, tivemos de sair.
Em 2007, a Ler Devagar construiu a Fábrica Braço de Prata e em 2009 abriu as portas na Lx Factory. No mesmo ano, encerraram a livraria da ZDB e a da Cinemateca e abandonaram a livraria da Fábrica Braço de Prata. Concentraram-se em Alcântara. Por ser autor de livros como a “Governação de Proximidade” e “A Cidade na Encruzilhada”, considera que estas mudanças de local, especialmente a mais recente, contribuíram para facilitar a resolução das encruzilhadas da Cidade das 7 colinas?
JS: [Risos] Nós queríamos era fazer boas encruzilhadas. O ideal era que estivéssemos nesses diferentes espaços com diferentes intensidades, interesses e objetivos. Mas não é assim tão simples e tivemos que nos concentrar aqui. O que é interessante na encruzilhada tem a ver com os territórios da cidade: saímos do Bairro Alto e fomos para oriente, depois para ocidente, mas sempre para espaços em regeneração. Entretanto, fomos para o mundo rural em Óbidos. O nosso objetivo era ter espaços em sítios inesperados.
A Lx Factory é, em si, um espaço regenerado. Fez todo o sentido uma instituição que quer regenerar-se vir para aqui.
JS: Sim. A industrialização portuguesa começou em Alcântara no tempo do Marquês de Pombal. Isto foi uma fábrica de tecidos e, mais tarde, uma tipografia muito importante – a Fábrica Mirandela. É para nós estimulante fazer parte desta transição entre o passado e o futuro.
“Ao princípio éramos bastante sonhadores, chegámos a pensar meter livrarias no meio das cabras e dos pastores”
Em 2013, a Ler Devagar propôs e promoveu a instalação da “Vila Literária de Óbidos”, juntamente com a livraria infantil História com Bicho e com o apoio do município de Óbidos. Este último projeto veio deslocar os holofotes que eram anteriormente monopolizados pela capital. Qual foi o seu papel nesta empreitada?
JS: Alguns de nós vêm de Viseu, São Pedro do Sul, Aveiro, Alentejo… Mesmo vivendo em Lisboa há muitas décadas, sempre tivemos uma ligação muito forte a outros territórios do país. Queríamos fazer desde o início qualquer coisa no mundo rural. Ao princípio éramos bastante sonhadores, chegámos a pensar meter livrarias no meio das cabras e dos pastores. Era muito poético, mas não vendia. Um dia, a livraria Bichinho de Conto disse-nos que a Câmara Municipal de Óbidos estava a fazer um concurso para animação cultural de uma igreja medieval do século XIII, entretanto dessacralizada. Eu, o José Pinho e a Mafalda Milhões olhámos para a Vila e pensámos “É isto. Mas só uma livraria não funciona”. Apresentámos um projeto para transformar Óbidos numa “Vila Literária” com 14 livrarias. Concretizou-se e neste momento temos três. Há ainda um festival anual internacional, vários eventos e conferências, e já convidámos prémios Nobel. Fizemos uma candidatura à UNESCO e Óbidos já é uma vila património literário da humanidade.
E como é que está organizada a Ler Devagar?
JS: Isso é muito importante: há três conselhos. O Conselho da Administração gere os diferentes espaços e estratégias. O Conselho das Artes e dos Eventos gere a agenda, que é muito importante porque a Ler Devagar tornou-se de tal maneira icónica que várias editoras e associações de teatro e cultura vêm para aqui fazer os seus eventos. A nossa política é só cobrar às empresas. As instituições da sociedade civil e do terceiro setor não pagam e é para nós um prazer construir estas interligações. Finalmente, o Conselho de Leitura vê os livros que temos e faz questão de que sejamos o mais abertos possível. A designação comercial da Ler Devagar é “Livraria de Fundos” – são os fundos das livrarias, aqueles que estão guardados nos armazéns. Temos os best-sellers nas mesas lá em baixo, mas 95% do espaço da livraria são livros inesperados. Alguns são famosíssimos ou clássicos, mas não se encontram facilmente nas outras livrarias.
“Sentimos uma responsabilidade para com a sociedade e para com a cultura em Portugal”
É Administrador e Membro da Direção da Associação Cultural desta Livraria. O que significam estas funções para si?
JS: Em primeiro lugar, uma responsabilidade particular por ter sido fundador e continuar como um dos administradores. Sentimos uma responsabilidade para com a sociedade e para com a cultura em Portugal. Ao mesmo tempo, todos gostávamos de nos dedicar mais ao universo da Ler Devagar. De todos os fundadores, só um de nós, o Diretor Geral, é que está cá a tempo inteiro. A rentabilidade destes espaços vai para o salário dos nossos empregados. Em Portugal não há uma política de apoio, incluindo financeiro, a estas iniciativas que podem fazer mover uma sociedade…
Portugal esqueceu-se um bocadinho da cultura…
JS: Não só da Cultura. Em França, há um programa concreto de apoio às livrarias independentes e aos centros culturais. Nós tivemos um ou outro apoio muito ocasional relacionado com a compra de livros. Não quer dizer que não esteja contente como professor da NOVA FCSH, mas gostava muito de interligar mais a carreira académica com as dinâmicas daqui…