A conversa descontraída foi no próprio local de sua exposição. Pietro Prosérpio, criador de várias peças presentes na livraria Ler Devagar, na LxFactory, contou um pouco sobre como começou a sua paixão pelos brinquedos e, também, sobre temas que são frequentes em suas peças, como o tempo. 
Texto e fotografias: Clarisse Verdade 

 

Brinquedos:
da infância para vida toda 

Dono há 10 anos de uma exposição de brinquedos com movimento na Ler Devagar, na LxFactory, Pietro Proserpio ficou conhecido como Gepeto, o pai do Pinóquio. Vivenciou desde bombas a cair perto de sua casa quando ainda morava em Itália a frustrações numa antiga Lisboa sem gelados de pau Olá. Teve quatro netos, que não seguiram a sua paixão pelos brinquedos, e o seu sonho hoje é o futuro de sua exposição.

Nasceu em 1939, ano em que a Segunda Guerra Mundial se iniciava, em Calolziocorte, uma aldeia perto de Milão. Pietro Proserpio, aos sete anos, da vista da fábrica de tecido em que seu pai trabalhava, ainda conseguia ver as bombas a serem atiradas contra uma ponte que, pelo que conta, era importante para os alemães ou para os ingleses, não se recorda. Depois da guerra acabar, mesmo em meio a lembranças ruins, contou uma história que o faz rir até hoje, a andar em sua bicicleta próximo a esses buracos, uma vez caiu com a roda da frente dentro de um, “ploft”.

Ainda em Itália, sua paixão pelos brinquedos já se tornava evidente. Construía os seus próprios com peças de madeira encaixáveis e passava horas a brincar no pátio da fábrica, porém, ainda sem lhes dar movimentos.
Em 1949, quando tinha onze anos, veio morar para Lisboa, pois o seu pai passou a gerir uma fábrica de tecidos em Benfica. Ao chegar, deparou-se com situações que o deixaram indignado, como o facto de ainda não terem chegado cá os gelados de pau, Olá, e que para ir ao cinema, tinha de usar terno e gravata, o que fez com que fosse impedido de entrar algumas vezes nas salas.

Nas praias também não era como em Itália, tinha de se usar peitilho, uma camisola para homens e miúdos, mas a maioria recusava-se a vestir, então, quando se aproximava o cabo do mar, que era um fiscal que andava pela praia, ouvia-se de longe “cabo do mar, cabo do mar, cabo do mar” e todos vestiam a camisola.

No Liceu Francês, escola em que seus pais o colocaram para estudar e onde aprendeu português e francês, conheceu sua esposa. Eles moravam na mesma rua e todos os dias apanhavam juntos o autocarro para a escola e foi assim que o amor entre eles floresceu. Casaram-se anos depois e logo tiveram duas filhas, que lhes deram quatro netos. Criaram uma “família fabulosa”. Porém nenhum deles seguiu sua paixão pelos brinquedos.
A paixão prevaleceu e ganhou vida

Com a escola finalizada, seguiu os passos do pai na fábrica têxtil, mas no fundo sabia que o seu amor não era pelos fios e sim pela mecânica, por isso nunca a deixou de lado. Os brinquedos de início eram criados para diversão própria e para dos seus amigos, depois para as suas filhas e de seguida para seus netos. Quando todos já estavam crescidos, voltou a criá-los para si.

Suas peças, entretanto, começaram a ganhar vida. Depois de uma viagem, em que conseguiu fazer um movimento utilizando um pequeno motor, passou a repeti-lo e melhorá-lo em outros brinquedos. Para este movimento, começou a reutilizar motores de carrinhos telecomandados e de peças de computadores, por exemplo, tornando a reciclagem uma parte fundamental de suas criações. As histórias por detrás das peças também começaram a surgir.

Essa paixão fez com que, em 2009 aceitasse o convite de Michel, expositor residente da Ler Devagar, para juntar-se a ele no penúltimo andar da livraria e expor as suas criações. Desde então é onde passou a estar das 15 até as 20 horas, fazendo tours guiados a contar sobre as histórias das suas peças em cinco línguas diferentes.

“Uma pessoa que não sonha é uma pessoa sem vida”. A vida passa, e Pietro, já com seus 81 anos, tem mais um sonho. Deseja que, quando não puder mais continuar a apresentar as suas peças, alguém possa continuar a “dar-lhes vida”.

 

De que forma a sua infância influenciou ser o inventor que é hoje?
Desde sempre tive essa paixão. Na fábrica que meu pai trabalhava, quando morávamos ainda em Itália, tinha uma carpintaria e, antigamente, todas as coisas de madeira eram trabalhadas com encaixes. Eu juntava essas madeirinhas todas e fazia casinhas, brincava com eles durante dias.

Eu sempre fui inventor. Lembro-me também de um episódio cómico dos carros de roda, aqueles carrinhos de caixote de sabão. Eu tinha feito um carro desses e claro, como íamos embora de Itália, onde vivi até os meus onze anos, não ia trazê-lo para Portugal. Então, no pátio que havia na fábrica, pus o carrinho para ser leiloado. Neste dia, minha mãe veio à janela do primeiro andar do edifício da fábrica, que era onde eu morava, e viu o pátio cheio de miúdos, estavam todos a ver o carro e a querer comprá-lo, então ela virou-se para mim e perguntou o que estava acontecendo, já podes imaginar o ralhete que apanhei.

 

A paixão pelos brinquedos e pela arte cinética começou como?
A minha vida profissional foi na indústria têxtil, mas eu não gostava de fios, gostava de máquinas.

Um dia fui passear para Marvão e visitar um castelo, só que, para chegar lá em cima, era uma estrada cheia de pedregulhos, de maneira que uma pessoa, para andar, tinha de olhar para o chão. Então quando estava a subir, vi caído um motor eléctrico pequenino, apanhei-o, sempre apanho o lixo todo. Quando cheguei a casa, liguei-o a uma pilha e começou a mexer-se. Comecei a fazer um movimento muito simples e foi evoluindo e chegou ao que tenho hoje.

Mas a verdadeira paixão pela arte cinética foi despertada, principalmente, por uma visita que fiz em Madrid, ao museu Reina Sofia, onde houve uma exposição de arte cinética. Ali vi as primeiras peças com movimento. Havia uma com expirais que rodavam e eu fiquei ali quase uma hora a tentar perceber como é que aquilo funcionava. Depois eu descobri e fiz uma máquina com várias expirais que agora está guardada.

 

Como nasceu a ideia de trabalhar com peças mecânicas recicladas?
Foi uma noção de economia, essa é a razão real. A razão oficial é que é preciso reciclar para prepararmos um mundo melhor para os nossos filhos.

Mas eu sempre gostei de apanhar lixo. Por exemplo, uma das atividades acessórias da arte cinética é a descoberta do lixo, então sempre que estou a andar na rua, estou a olhar para os contentores. Tenho aqui várias peças que encontrei nestes. Isto é dar vida a peças que já acabaram com a vida delas, dar uma nova vida.

 

O tempo é um tema sempre presente em suas peças. Porquê?
O tempo foi a primeira coisa que inspirou a criação das minhas peças, porque o tempo é tudo e não é nada, nem se quer tem o nome só para ele. Temos o tempo das horas e o tempo da chuva. Nas línguas Anglo-Saxônicas há duas coisas “time” e “weather”, mas, nas línguas latinas, a palavra tempo é usada para as duas coisas.

Quando nos deixamos de ser jovens, por exemplo, o tempo torna-se cada vez mais importante, porque quando se é novo o tempo nunca mais passa, mas quando chegamos a minha idade, os anos são meses, os meses são semanas, as semanas são dias e os dias são horas.

Ainda tenho aqui duas ou três máquinas sobre o tempo, mas eu tinha toda uma série de sete ou oito máquinas sobre tempo, não estão mais arrumadas porque não há espaço para expor.

 

Todas as suas peças têm uma história, quer destacar a que mais gosta?
Todas elas mexem comigo. E se pergunta se tenho uma peça preferida, minha resposta seria, quando tiver filhos e alguém lhe perguntar qual deles você prefere, o que você responderia?
As peças são meus filhos, não tem como escolher.

 

Essas histórias são criadas enquanto está a fazer as peças ou vem depois?
A confecção de uma peça normalmente passa por duas fases. A primeira é imaginar o movimento mecânico, quando o tenho feito, imagino uma história e a partir daí, a peça é subordinada a ela. Por outro lado, quando decidi fazer uma máquina do tempo, então é a partir disso que é construída.

 

Qual o significado da bicicleta voadora que tem na entrada da livraria?
Eu a criei em 2011. Onde estamos agora, antes tinha aqui uma exposição que foi feita para chocar, era sobre o lixo, toda está parte em que minhas obras estão agora expostas, estava cheia de lixo, era uma autêntica lixeira. Quando tiraram tudo esqueceram-se de tirar uma bicicleta que estava pendurada no andar de cima. Eu olhava para ela todos os dias, estava toda enferrujada, e pensei que tinha que fazer qualquer coisa. Puxei-a para baixo, pendurei-a, pintei de branco e arranjei umas asas para ela, depois chamei o José Pinho, o dono da Ler Devagar e perguntei se ele gostava e ele disse que sim, então perguntei se poderia colocá-la suspensa na frente da livraria. Mas a bicicleta ainda não tinha a menina. Continuei a olhar para ela e senti que faltava qualquer coisa. Fui ter com a minha esposa, que é escultora, porque de desenho, eu não desenho nada, e perguntei se ela poderia criar uma boneca para por em cima da bicicleta e mostrei o movimento que eu queria. E ela fez-me a boneca e ficou muito giro.
Depois de um tempo, as pessoas começaram a perguntar por que a bicicleta não ia para frente e para trás e eu dizia que as pessoas estavam malucas, aonde já se viu uma bicicleta andar para frente e para trás. Tive então a ideia de criar algo que pudesse fazer este movimento e logo pensei no monociclo. Surgiu então o Sonhador, também com boneco feito pela minha esposa.

 

Clarisse Verdade // Junho de 2019