O relógio marca as três da tarde. O sol de inverno está espelhado no Rio Tejo. Se Belém é a paragem do dia, a Ler Devagar faz parte do itinerário obrigatório. O silêncio que se esperava numa livraria é aqui apenas ruído de fundo. Entre leituras abreviadas, exposições de arte e conversas de café, qual será o nosso pior inimigo? O tempo dedicado ao maior amor ou a angústia de ele se esgotar?
Passa pouco da hora de almoço e as pessoas circulam à velocidade da hora de ponta. Enquanto uns conduzem para o trabalho, outros movimentam-se pelo lazer. Um letreiro iluminado acusa, por uma rua estreita, o acesso à Lx Factory. O som é partilhado pelos pássaros, pelo murmurinho do convívio e pelo saxofone do jazz que toca nas colunas. São espaços que carregam um passado industrial que remonta ao século XIX e hoje acolhem arte local e pequenos negócios, que se dão a conhecer a quem decide espreitar.
A hora do dia pouco importa, pois, quando o sol se põe, o ambiente íntimo é garantido por mantas e pequenas luzes decorativas. Quem por lá passa enche a memória das câmaras fotográficas entre as ruas grafitadas e sobrevoadas pela Ponte 25 de Abril, cenário já familiar nas redes sociais. Pode ser do cheiro a livro novo ou das estantes infinitas, mas são poucos os que passam na Ler Devagar sem se deixarem seduzir pela curiosidade.
“Também os brancos sabem dançar”, diz o cartaz que recebe as pessoas à porta. É publicidade, em amarelo vivo, da obra de Kalaf Epalanga. A decoração casa o velho com o moderno. Por cima das cabeças voa uma bicicleta de asas brancas, montada por uma menina. É o coração da livraria e tem nome: “Menina Sonhadora” – muito prazer. À entrada avistam-se duas mulheres que recebem as pessoas com um sorriso atarefado.
Alexandra Sousa trabalha na livraria há quatro anos. Sempre de olho atento nos clientes à sua volta, oferece um café e senta-se na única mesa vazia, para contar que faz de tudo: arruma os livros, atende ao balcão, serve cafés e organiza os eventos. Sim, eventos na livraria. Desde concertos a debates e até mesmo apresentações de livros. O espaço é grande e chega para todos.
Cada passo na livraria é uma viagem entre romances, aventuras e contos infantis. Os quatro andares do edifício acompanham as prateleiras de livros, as obras de arte e os assentos para quem prefere folhear uma obra ao sabor de uma bebida. As explosões de cores em papel, madeira e ferrugem são indícios de um complexo industrial que deu lugar à cultura. Qualquer livraria nasce da narrativa, mas aqui todos os objectos têm uma história por contar.
Menino Sonhador
Um lance de escadas de metal dá acesso ao terceiro andar, onde permanece montada a rotativa que outrora imprimira o Público, o Expresso e os bilhetes da lotaria. Foi nesta estrutura que Pietro Proserpio, escultor italiano, montou uma viagem pela sua imaginação. Quem visita dificilmente fica imune à magia deste lugar. Com o circuito já memorizado, o artista apresenta as suas peças aos turistas. Já as tem na ponta das suas quatro línguas – italiano, francês, português e espanhol. Se precisarem de outra, improvisa com facilidade.
Madeira, metal e plástico são alguns dos materiais que utiliza, todos eles reciclados. Enquanto não se ouvem passos nas escadas, encosta-se ao braço da rotativa para esclarecer que a construção das peças tem “um desporto anexo que é espreitar os caixotes do lixo”. Um dia partiu o chapéu de chuva no meio de um temporal. “Normalmente, quem parte, deita fora”, mas Pietro usou os ferros do chapéu para criar a Tarântula Josefina. Pendurada por um fio, recria os movimentos de uma aranha e dá um arrepio. Com uma garrafa de perfume da Hugo Boss, moldou a cabeça de Hugo, o Formigão. Do outro lado da bancada, mostra orgulho em apresentar um gira-discos feito de CD antigos que, quando rodam, fazem tocar “Asa tão leve”, de Amália Rodrigues. E é ao som da tradição portuguesa que continua o espetáculo.
Os holofotes viram-se para uma máquina de relógios antigos. “Preciso de um voluntário para soprar”, diz Pietro. Uma jovem de cabelo ruivo e olhos claros chega-se à frente. Sopra e, com uma cara de surpresa, vê os ponteiros girarem na direção contrária. Se para muitos é sinal de azar, para o escultor é uma sorte, pois permite viajar no tempo. Mas não se pode deixar voltar muito atrás, porque “não se brinca com coisas sérias!” Animadas por motores descartados de computadores e outros controles remotos, as esculturas propõem um jogo entre a mecânica do passado e a tecnologia do futuro.
No fim do percurso, tem bilhetes deixados pelos turistas. “Not sure if you’re crazy or a genius, but either way, keep going” (“Não sei se és maluco ou um génio, mas de qualquer das formas, continua”). Artigos escritos sobre Pietro, memórias da sua família e um sofá antigo são os elementos que fazem o seu “escritório”. À vista de todos estão pendurados poemas que o inspiram. H. Himaldo e José Luís Peixoto são alguns dos autores que dão nome à passagem do tempo, que o artista italiano contorna e desafia.
O relógio do presente conta quatro horas da tarde e são muitos os que já passaram, mas também os que virão. Todos os dias (menos ao Domingo à tarde) mostra o seu trabalho às pessoas. “Ao fim de semana é uma bicha que vem por aí acima”, desabafa, entre demonstrações. O som que mais o acompanha é o do “Menino Sonhador” e é com grande felicidade que revela a sua história. “As pessoas que olhavam para a bicicleta perguntavam porque é que ela não anda para a frente e para trás” ao qual Pietro respondia: “tu és maluco, já viste alguma bicicleta andar para a frente e para trás?”. Assim se inspirou para esta escultura. Um monociclo que, como o relógio, avança e recua nas asas do tempo.
5721 caracteres na peça principal
Duas décadas de leitura partilhada
Fundada em 1999 no Bairro Alto, a Ler Devagar celebra agora 20 anos. Tem mais de 50 mil títulos de livros e é considerada uma das 20 livrarias mais belas do mundo, ou das 10 mais belas se se considerarem as livrarias instaladas em edifícios recuperados.
A 23 de Abril de 2009 abriu portas na Lx Factory. Alexandra Sousa conta com orgulho que “as pessoas visitam mais pelo que o espaço tem a oferecer”. Não só porque mantém a estrutura original, o que lhe confere um cariz histórico, mas também porque “incentiva à leitura e as pessoas podem pegar num livro e ir ler para o café”.
Ana Margarida e Carolina Duarte, estudantes na Universidade de Lisboa, são caras familiares no espaço. Entre as leituras e o lanche, confessam recorrer à livraria para estudar e conviver. Nos eventos, as alunas apontam que se serve à mesa o debate e a boa disposição.
“O comércio melhorou muito nos últimos anos com as redes sociais e as notícias que se fizeram sobre a livraria”, como explica a funcionária, desde que saiu nos grandes jornais – dentro e fora do país. Ainda assim, os turistas parecem vê-lo pela lente da câmara. “Às vezes só vejo o pau da selfie a entrar e a sair, nunca chego a ver a pessoa”, reitera Alexandra, em tom de brincadeira.
Para os dois a três funcionários que lá trabalham por dia, “é muito difícil gerir”, desabafa. Para além das múltiplas tarefas, acrescenta que a mais difícil é “passar entre a multidão”. Ainda assim, afirma com convicção que a entrada paga não está nos planos.
Com vários projectos, de Lisboa a Óbidos, a Ler Devagar continua a investir na cultura da palavra. Duas décadas de trabalho são relembradas com nostalgia pelos que a mantêm a funcionar. Já com olhos postos no futuro da livraria, os funcionários partilham entusiasmo pelo que está para vir.
1833 caracteres na peça secundária
Galeria de fotografias
Rafaela Chambel // Maio de 2019